A Relação com o Outro na Fenomenologia: Possibilidades, Limites e Confrontos

5945167-1
Pós-Graduação

Origem:

Psicologia
Psicologia em Saúde e Desenvolvimento

Vigência

03/12/2020
03/12/2020
2020-11-19 00:00:00

Carga Horária

3 horas
0 horas
9 horas
120 horas
8
10 semanas

Responsáveis:

Reinaldo Furlan
03/12/2020
03/12/2020
03/12/2020
19/11/2020

André Dias de Andrade
03/12/2020
03/12/2020
03/12/2020
19/11/2020



O objetivo da disciplina é abordar a questão do outro, tomando como base o pensamento de Lévinas em sua relação com a fenomenologia, num diálogo e debate com Husserl, Sartre e Merleau-Ponty.


Na disciplina mediremos alcance de abordagens filosóficas, psicológicas e éticas da relação com o outro, tendo como base a filosofia de Lévinas junto das alternativas que toda uma tradição oferece a respeito da questão. Assim, nossa passagem pela fortuna crítica já delegada ao tema da alteridade será a todo tempo cotejada com o tratamento que lhe confere Lévinas, de modo a enriquecer o campo conceitual e a discussão, já que uma disciplina sobre a “relação com o outro” só se faz, justamente, no ínterim desta relação. Lévinas é um autor que se encontra num ponto de injunção entre a Fenomenologia, como filosofia do sujeito, e o Pós-estruturalismo, não aderindo totalmente a estas e formulando críticas e diálogos com ambas as perspectivas. De fato, trata-se do autor que ressignificou a questão do outro no pensamento ocidental e a reinseriu numa filosofia e fenomenologia da alteridade cujo ganho teórico ainda deve ser estimado. Trataremos, portanto, de conduzir nossa reflexão rumo aos fenômenos extremos do Outro, de sua alteridade e de sua diferença.
Por que enfrentar esta discussão? Porque antes de tratar da questão do outro, pressupondo-o, é preciso considerar qual o seu tipo de existência e modo de ser. A polêmica tese do solipsismo, segundo a qual só consigo provar a existência de minha subjetividade (do Eu), deve ser considerada. Neste campo de confronto há tantos argumentos quanto se queira na história das ciências humanas para a existência da subjetividade das outras pessoas, mas todas elas parecem prová-la a partir da consciência que a apreende. Para simplificar: elas ainda concebem o outro como um outro Eu, nunca como um outro Outro, distinto peremptoriamente de mim. Lévinas, ao contrário, subverte certas posições fáceis, mecanismos conceituais preconceituosos e toda forma de egoísmo disfarçado de tolerância para com o outro. Ele inverte os princípios da prática filosófica, psicológica e terapêutica convencional: trata-se de começar pelo Outro, e não pelo Eu; pela alteridade e não pela subjetividade, enfrentando as dificuldades de um tal projeto.
Tomaremos como base de discussão a obra de Emmanuel Lévinas, cujo pensamento é inteiramente devotado à questão, e isso por pelo menos dois motivos importantes; um de ordem teórica e outro bastante pessoal. Primeiro, a importância que a questão da alteridade coloca para todo o paradigma ocidental baseado na busca de identidade, individuação, de condições transcendentais a partir da consciência do Eu para tratar do fenômeno humano – o famigerado “Pensamento do Mesmo” – e, segundo, a experiência do aprisionamento deste pensador judeu num campo de concentração nazista. Este segundo motivo, tal como o primeiro, de maneira alguma é circunstancial ou imotivado: a todo momento corremos o risco de sermos despersonalizados, pela perda do contato legítimo e empático com aqueles à nossa volta, experiência que no limite incorre na melancolia, e de sermos levados a tomar o outro como um adversário em potencial ou como um objeto de desejo, de todo modo, como um outro a ser extirpado ou consumido, cujo limite é o fascismo, vivido pelo próprio Lévinas.
Enfrentar a questão do outro – arriscar-se ao “Pensamento do Outro” - impele a retomá-lo pela sua dimensão mais árdua para a teoria, pois quando perscrutamos sua alteridade a partir dele mesmo, é um verdadeiro Outro que se anuncia ali, mas cujo sentido jamais seremos capazes de compreender em sua infinitude. Daí que, por meio da obra de Lévinas, passaremos pelo seu diálogo e embate com toda uma tradição que buscou compreender o fenômeno do outro, desde a psicologia e suas abordagens projetivas, empáticas, conflitivas de ascender à psique inobservável, até a filosofia quando forja grandes aparatos conceituais como a dialética, a intersubjetividade, a intercorporeidade e o conceito de diferença para tal. Um a um, todos estes procedimentos serão antevistos em seu ganho e mensurados em seu prejuízo, que é a sempre renitente dificuldade de considerar o outro a partir de sua alteridade. Nos limites dessa abordagem encontraremos a ética como princípio regulador dos diversos fenômenos vividos, tais como o amor, a agressividade, o aprendizado, o sofrimento, a confiança e mesmo a relação interespecífica, ou seja, quando a alteridade puder concentrar-se mesmo por detrás de todo animal.


Se o “Eu é um Outro”, tal como escrevia Rimbaud, é preciso saber em que medida podemos tornar a reflexão a respeito da alteridade fundamental. Como podemos iniciar nossas investigações pela relação com os outros e em que sentido ela é mais basilar que a relação que o eu possui consigo mesmo. Passaremos por diversas abordagens deste fenômeno tão difícil quanto crucial que é o da exterioridade e dos limites de nossa noção mais arraigada de subjetividade para a cultura ocidental, e o pensamento de Lévinas atuará como um princípio regulador, disciplinar, seletivo, que nos permitirá avaliar a dificuldade que toda tradição em ciências humanas possui para dar conta da questão da alteridade sem reduzi-la a um princípio cognoscível e pré-preparado pelo eu (ainda que reiteradas vezes disfarçado de “nós”). Sair dos ditames da subjetividade, de seu império e horizonte de conceitos que passam a impressão de compreensibilidade, é uma tarefa extremamente difícil, e por isso não basta nessa disciplina tomar como norte a filosofia do Outro tal como proposta pelo autor. Procuraremos remontar aos aspectos principais da “Filosofia do Mesmo” a fim de medir seu alcance. Dividiremos a disciplina em 6 tópicos explorados ao longo de 10 semanas de curso.
1 - Do Outro sem o Eu
Primeiro, analisaremos o esquema dialético da relação entre Senhor e Servo tal como previsto por Hegel no quarto capítulo de sua Fenomenologia do Espírito, em como o modelo da intersubjetividade e da apreensão do fenômeno do Outro como “outro Eu” (alter Ego), sob a forma da empatia (Einfühlung), formulado por Husserl. Seria possível pensar o Outro sem partir do Eu, o u sem pensa-lo como um outro Eu?
2 - O outro corpo, o corpo do Outro?
Em seguida, iremos nos aprofundar nesta alteridade inescrutável do Outro, a partir de um exame de seu corpo e no embate com a Fenomenologia da Percepção de Maurice Merleau-Ponty. Superado o paradigma da inter-subjetividade, que prevê o outro como outro sujeito, tal como o Eu, agora é vez de considerar se aquele da inter-corporeidade nos lança em terras mais férteis para considerar a sua alteridade. Após o exame dos ganhos orundos da fenomenologia do corpo próprio e da psicologia da Gestalt, segundo a qual o Outro é apreensível a partir de seu gesto e de seu comportamento observável, será preciso questionar se o outro corpo é, afinal, o corpo do Outro, e mais uma vez colocar em perspectiva tais abordagens. Terminada esta recuperação da relação corporal e mesmo da diferença sexual, cuja descrição cabal está em O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir e na crítica que ela própria endereça a Lévinas, será preciso considerar em que medida o corpo e a carne nos permitem considerar um território “comum” de sentido, partilhável pelas pessoas e a partir do qual elas podem, juntas e apesar de suas diferenças, compreender-se mutuamente. Como veremos, é aqui que o grande tema levinasiano do “Rosto” aparece, como uma porta de entrada para a alteridade da outra pessoa, em sua infinitude incapaz de ser esgotada.
3 - Diante da dor do outro.
Depois de ter considerado como o Rosto do outro nos concede acesso a uma alteridade infinita, cujo sentido não cabe em sua própria manifestação, na apresentação plástica de olhos, nariz, sorriso e tantos outros trejeitos capazes de serem descritos e explicados, é preciso então concluir que ela nos abre a um tipo de relação que só pode ser ética. Aqui as noções de responsabilidade e hospitalidade começam então a tomar forma, na mesma medida que a infinitude do Outro começa a anunciar-se para nós. Será preciso descobri-lo em sua vulnerabilidade, logo, nas situações limites quando repousamos diante da sua dor. Pois o Outro é um tipo de ente incapaz de definição, um “ente sem ser” como escreve o autor, que em si mesmo é já apelo à nossa responsabilidade, desvelada na nudez de seu Rosto. Se o Outro é a possibilidade da nossa subjetividade, será preciso resguardar a todo custo sua vida, sob pena de perdermos a nós mesmos.
4 - A perda do rosto do Outro
Mas, depois de tal imperativo da hospitalidade e da salvaguarda da alteridade alheia, será preciso mesmo mensurar se nossa distância ao Outro já não irrecuperável, numa época cada vez mais individualizada e impessoal. Para isso, situaremos a relação com o outro no bojo das novas tecnologias de informação e de comunicação. A perda da relação face-a-face parece ser uma consequência de nosso cenário atual, cuja proposta traiçoeira de uma “rede social” ou de uma “grande teia mundial” (World wide web) que conectasse diversas demandas, fomentando assim a criação e o contato com o Outro, na verdade parece levar ao ocultamento do diferente e ao fechamento para sua alteridade. Julgamos necessário atualizar a leitura de Lévinas – que não pensou detidamente este tema – e saber se é possível recuperar o contato com o Outro ou se, no limite, devemos diagnosticar a falência da relação ética em nossos dias. Num mundo completamente mediado, como deixar o outro falar? Como escutar o seu apelo?
5 - O paraíso são os outros.
Nosso quinto tópico procura manter a dificuldade para com o Outro como um princípio vigilante a fim de que, a partir dele, possamos compreender que sem os outros não há justiça, verdade ou sentido. Seja o que for “verdade”, é com o outrem que nos dirigimos a ela, sendo preciso inverter a máxima de Sartre – “o inferno são os outros” – e afirmar que, ao contrário, “o paraíso são os outros”. A expressão retirada de Valter Hugo Mãe serve apenas como ponto de partida, pois é num embate frontal com Sartre que vamos poder medir a vitalidade das teses éticas de Lévinas. Contra as relações conflitivas de O ser e o nada (1943) (baseadas na vergonha, sadismo, ódio, indiferença) que procuram dominar a alteridade e o olhar que ela retorna à nós, Lévinas toma um caminho diferente em Totalidade e Infinito (1961) (passando pelo amor, aprendizado, hospitalidade e confiança) onde propõe pensar a filosofia não mais como “Amor à sabedoria” e, sim, como “Sabedoria ao amor”. É somente assumindo a alteridade e a vulnerabilidade do Rosto, em vez de explicá-la, definí-la e, por isso, determiná-la que seremos capazes de compreender, sem mensurar, seu infinito.
6 - O animal tem Rosto?
Por fim, é preciso colocar uma última questão à noção de alteridade conquistada em nossa jornada: o animal tem Rosto? Questão bastante contemporânea, que limita a subjetividade dita humana e, na mesma feita, amplia o conceito de alteridade para suas formas não-humanas. Reconstruiremos a noção de humanismo de Lévinas, e sua crítica ao anti-humanismo das tendências pós-estruturalistas e pós-modernas para, enfim, descobrir o seu alcance. Por fim, à guisa de conclusão, discutiremos o quanto as teses de seu livro O humanismo do outro homem (1972), permitem pensar um paradigma ético para as relações interpessoais e interculturais na América Latina. Dada a multiplicidade de formas de vida, de sincretismo de práticas e ritos religiosos, da hibridez da subjetividade e da cultura latino-americana, que tipo de alteridade e de ética são possíveis? Retomaremos o diálogo entre Lévinas e Enrique Dussel para encaminhar este tema derradeiro.


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Trabalho monográfico ou ensaio de cerca de dez páginas sobre o aproveitamento da disciplina.


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